Cinema e Argumento

“A Paixão Segundo G.H.” é difícil transposição do romance de Clarice Lispector para o cinema

Nada me fazia supor que eu estava a um passo de um império.

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Direção: Luiz Fernando Carvalho

Roteiro: Luiz Fernando Carvalho e Melina Dalboni

Elenco: Maria Fernanda Cândido e Samira Nancassa

Brasil, 2023, Drama, 124 minutos

Sinopse: Rio de Janeiro, 1964. Após o fim de uma paixão, G.H. (Maria Fernanda Cândido), escultora da elite de Copacabana, decide arrumar seu apartamento, começando pelo quarto de serviço. No dia anterior, a empregada (Samira Nancassa) pediu demissão. No quarto, G.H. se depara com uma enorme barata que revela seu próprio horror diante do mundo, reflexo de uma sociedade repleta de preconceitos contra os seres que elege como subalternos. Diante do inseto, G.H. vive sua via-crúcis existencial. A experiência narra a perda de sua identidade e a faz questionar todas as convenções sociais que aprisionam o feminino até hoje. Baseado no romance de Clarice Lispector.

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Por definição, obras da literatura consideradas “inadaptáveis” sempre dividirão opiniões quando transpostas para o cinema. Lembro particularmente de Ensaio Sobre a Cegueira, que foi levado às telas por Fernando Meirelles com a bênção do próprio autor José Saramago. Ao fim de uma sessão à época de lançamento do filme, Saramago disse, emocionado, que sua alegria em ter visto o resultado era a mesma de quando ele havia terminado de escrever o livro nos anos 1990. Se uma lenda da estatura do escritor aprovou o resultado, quem haveria de contestá-lo? Pois o público não foi lá muito simpático com o longa de Meirelles, provando que romances amplamente consagrados e reconhecidos por suas naturezas inadaptáveis dificilmente alcançarão algum tipo de unanimidade.

Arrisco dizer que A Paixão Segundo G.H. não foge à regra. Tomando como base o romance homônimo lançado pela escritora Clarice Lispector em 1964, a versão cinematográfica marca o retorno do cineasta Luiz Fernando Carvalho à direção de longas-metragens. Seu último trabalho para o cinema foi em 2001, quando lançou o belo Lavoura Arcaica, adaptação do livro de Raduan Nassar. Mais uma vez se lançado em um desafio fílmico-literário, agora acompanhado de Melina Dalboni na confecção do roteiro, o diretor preserva, em A Paixão Segundo G.H., o domínio estético e a sensorialidade muito própria do seu cinema, ao mesmo tempo em que adota um formato demasiadamente hermético para narrar uma história que precisava de mais ar para ganhar vida.

Quem dá vida à protagonista G.H. do título é Maria Fernanda Cândido, em uma interpretação que, com certeza, ficará entre as mais citadas de sua carreira. Para além de sua beleza clássica, que é explorada pelo diretor com inúmeros closes, belos figurinos e monólogos em que olha diretamente para a câmera, Cândido dá conta da imensidão de sentimentos e reflexões que se desenham em cena, o que é um desafio dos mais difíceis. Cabe a ela, em grande parte, garantir a conexão com o espectador, também porque A Paixão Segundo G.H. é um filme-solo e ambientado em um único local (o apartamento da protagonista), com uso de quase nenhum outro personagem, exceto a empregada vivida Samira Nancassa, em participação mínima. E Cândido se sai muitíssimo bem, seja como musa ou nas múltiplas facetas dessa escultora que decide reorganizar a própria casa.

Acontece que A Paixão Segundo G.H. pesa a mão na verborragia, sem deixar tempo para o espectador respirar. Talvez reverente demais com o texto de Clarice Lispector, o roteiro transmite as palavras da escritora de duas formas: em narração ou por meio de monólogos. Até mais ou menos a metade da projeção, o formato é eficiente, pois casa muito bem com o excelente trabalho de fotografia, direção de arte e trilha sonora. Entretanto, quando G.H. encontra a barata que será a razão de todas as suas reflexões, o filme perde seu impacto. Isso porque, conforme avança nos questionamentos da protagonista, o roteiro passa a amontoar, de maneira incessante, as belas, porém densas e complexas, meditações de Lispector, preservadas aqui vírgula a vírgula, sem um ajuste sequer. Se, em um livro, é possível fazer uma pausa para absorver pensamentos ou digerir divagações, na versão cinematográfica é impossível, pois não há espaço para isso.

A Paixão Segundo G.H. termina por se desviar para o intelectualmente exaustivo por conta dessa forma que alterna entre narrações e monólogos. Não lembro de já ter visto tanto texto em off no cinema — e, uma vez que o texto de Lispector foi intocado, a sensação é que, por vezes, o filme se aproxima de um audiobook —, assim como as declamações de G.H., em certa altura, parecem estar acontecendo em um teatro devido à união do tom literário, ao espaço limitado em que se passa (o quarto da empregada) e à própria dramatização de Cândido. Para o meu gosto pessoal, essa combinação acelerada deixa escapar o impacto. Afinal, quando estamos pescando a profundidade de uma passagem, ela logo termina para dar lugar a outra tão profunda quanto.

Navegando no que define como uma reação criativa à obra de Lispector e não exatamente como uma adaptação, o diretor Luiz Fernando Carvalho abarca, conforme ele próprio evocou na exibição do filme durante a última edição do Festival do Rio, a potência feminina que vai além da cosmo-política do homem ocidental. Os temas complexos são, claro, oriundos do livro original e também preservados à risca, inclusive na longa exploração da barata, observada aqui quase microscopicamente como a própria protagonista. Se A Paixão Segundo G.H. é considerado uma das obras mais densas de Clarice Lispector, é correto afirmar que, à parte questões de apreço ou não pelo resultado visto na tela, a recriação de Luiz Fernando Carvalho ganha pontos, ao menos, por bancar a realização de um longa muito próprio e específico, algo cada vez mais em falta nas salas de cinema. Não é para opiniões mornas.

Os vencedores do Oscar 2024

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Oscar de melhor filme concluiu trajetória invicta de Oppenheimer na temporada.

Só não pontuou bem nas apostas do Oscar 2024 quem resolveu apostar em alguma surpresa fora da caixinha. Previsível do início ao fim, a cerimônia revelou vencedoras há muito já esperados e, mesmo quando não confirmou aparentes favoritos, optou por candidatos facilmente identificáveis como alternativa. Previsibilidade, contudo, não deve ser sinônimo de injustiça, especialmente em um ano de concorrentes tão fortes como em 2024, como o próprio Oppenheimer, grande vencedor da noite.

Goste-se ou não, Christopher Nolan é o diretor de uma geração. Entre erros e acertos, fez seu nome e transita entre público e crítica. Sendo um reflexo da indústria cinematográfica norte-americana, o Oscar foi, sim, coerente ao premiá-lo. Isso sem falar no fato de Oppenheimer, um filme com três horas de duração, ter arrecadado quase um bilhão de dólares nas bilheterias. Ou seja, a Academia, tão cobrada por não se conectar com o grande público, também consagrou um sucesso comercial com Oppenheimer.

Por outro lado, concordo que a lista de vencedores poderia ser mais equilibrada, descontando uma ou outra estatueta do filme de Christopher Nolan para, por exemplo, o Oscar não carregar o vexaminoso fato de Assassinos da Lua das Flores ter saído das festas de mão abanando. Para parte do público que admira o filme de Scorsese, a conta foi parar nos ombros de Emma Stone levou seu segundo troféu para casa ao desbancar Lily Gladstone. Trata-se de uma injustiça com Emma, fenomenal em Pobres Criaturas e uma bela representante do forte ano para a categoria de melhor atriz.

Entre os prêmios técnicos, duas vitórias me deixaram particularmente felizes: a de Zona Interesse em melhor som e a de Godzilla Minus One em melhores efeitos visuais. A primeira por ser o reconhecimento ao trabalho excepcional desse segmento no filme de Jonathan Glazer e por mostrar que a Academia, vez ou outra, entende que melhor som não é sinônimo de apenas barulheira. E a segunda por lançar luz sobre uma equipe japonesa que, com baixo orçamento comparado aos padrões hollywoodianos, não ficou devendo nada ao cinemão estadunidense em termos de efeitos visuais.

Confira abaixo a lista completa de vencedores:

MELHOR FILMEOppenheimer
MELHOR DIREÇÃO: Christopher Nolan (Oppenheimer)
MELHOR ATRIZ: Emma Stone (Pobres Criaturas)
MELHOR ATOR: Cillian Murphy (Oppenheimer)
MELHOR ATOR COADJUVANTE: Robert Downey Jr. (Oppenheimer)
MELHOR ATRIZ COADJUVANTE: Da’Vine Joy Randolph (Os Rejeitados)
MELHOR ROTEIRO ORIGINALAnatomia de Uma Queda
MELHOR ROTEIRO ADAPTADOFicção Americana

MELHOR FILME INTERNACIONALZona de Interesse (Reino Unido)
MELHOR ANIMAÇÃOO Menino e a Garça
MELHOR DOCUMENTÁRIO20 Days em Mariupol
MELHOR MONTAGEM: Oppenheimer
MELHOR FOTOGRAFIAOppenheimer

MELHOR FIGURINOPobres Criaturas
MELHOR DESIGN DE PRODUÇÃOPobres Criaturas
MELHOR SOMZona de Interesse
MELHOR CANÇÃO ORIGINAL: “What Was I Made For?” (Barbie)

MELHOR TRILHA SONORAOppenheimer
MELHORES EFEITOS VISUAISGodzilla Minus One
MELHOR MAQUIAGEM & PENTEADOS: Pobres Criaturas
MELHOR CURTA-METRAGEMThe Wonderful Story of Henry Sugar

MELHOR CURTA-METRAGEM DE ANIMAÇÃO: War is Over!
MELHOR CURTA-METRAGEM DE DOCUMENTÁRIO
The Last Repair Shop

Apostas para o Oscar 2024

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Há poucos mistérios a serem resolvidos na cerimônia do Oscar 2024 que será realizada neste domingo (10). Com o favoritismo absoluto de Oppenheimer em categorias centrais, como as de melhor filme e direção, a disputa que mais se destaca acaba sendo a de melhor atriz, onde Lily Gladstone (Assassinos da Lua das Flores) e Emma Stone (Pobres Criaturas) protagonizam uma corrida apertadíssima e, por isso mesmo, tão interessante. Resta saber também se Barbie sairá da cerimônia apenas com o troféu de melhor canção como esperado ou se pode surpreender em categorias como as de melhor roteiro adaptado e design de produção. No mais, é bobeira perder o bolão em várias categorias.

Confira abaixo as minhas apostas:

MELHOR FILME: Oppenheimer / alt: Pobres Criaturas
MELHOR DIREÇÃO: Christopher Nolan (Oppenheimer) / alt: Martin Scorsese (Assassinos da Lua das Flores)
MELHOR ATRIZ: Lily Gladstone (Assassinos da Lua das Flores) / alt: Emma Stone (Pobres Criaturas)
MELHOR ATOR: Cillian Murphy (Oppenheimer) / alt: Paul Giamatti (Os Rejeitados)
MELHOR ATOR COADJUVANTE: Robert Downey Jr. (Oppenheimer) / alt: Ryan Gosling (Barbie)
MELHOR ATRIZ COADJUVANTE: Da’Vine Joy Randolph (Os Rejeitados) / alt: America Ferrera (Barbie)
MELHOR ROTEIRO ORIGINAL: Anatomia de Uma Queda / alt: Vidas Passadas
MELHOR ROTEIRO ADAPTADOFicção Americana / alt: Barbie

MELHOR FILME INTERNACIONAL: Zona de Interesse (Reino Unido) / alt: Dias Perfeitos (Japão)
MELHOR ANIMAÇÃO: O Menino e a Garça / alt: Homem-Aranha: Através do Aranhaverso
MELHOR DOCUMENTÁRIO: 20 Days em Mariupol / alt: As 4 Filhas de Olfa
MELHOR MONTAGEM: Oppenheimer / alt: Assassinos da Lua das Flores
MELHOR FOTOGRAFIA: Oppenheimer / alt: Pobres Criaturas

MELHOR FIGURINOPobres Criaturas / alt: Barbie
MELHOR DESIGN DE PRODUÇÃO: Pobres Criaturas / alt: Barbie
MELHOR SOM: Oppenheimer / alt: Zona de Interesse
MELHOR CANÇÃO ORIGINAL: “What Was I Made For?” (Barbie) / alt: “I’m Just Ken” (Barbie)

MELHOR TRILHA SONORA: Oppenheimer / alt: Pobres Criaturas
MELHORES EFEITOS VISUAIS: Godzilla Minus One / alt: Resistência
MELHOR MAQUIAGEM & PENTEADOS: Maestro / alt: Pobres Criaturas
MELHOR CURTA-METRAGEM: The Wonderful Story of Henry Sugar / alt: Invincible

MELHOR CURTA-METRAGEM DE ANIMAÇÃO: Ninety-Five Senses / alt: Letter to a Pig
MELHOR CURTA-METRAGEM DE DOCUMENTÁRIO: The ABCs of Book Banning / alt: The Last Repair Shop

Independent Spirit Awards 2024: diretamente de Los Angeles, um resumão do arrivals carpet e da cerimônia de premiação

Maior premiação do cinema independente norte-americano, o Independent Spirit Awards realizou a sua edição de 2024 no dia 25 de fevereiro e teve como grande vencedor o longa-metragem Vidas Passadas, de Celine Song, além de destaques para Ficção Americana, Segredos de Um Escândalo e Os Rejeitados.

Esse resumão em vídeo da premiação mostra as equipes dos filmes que passaram pelo arrivals carpets e traz comentários sobre a seleção. Descubra mais sobre o trabalho da Film Independent e confira os depoimentos da atriz Judy Reyes (Birth/Rebirth) e do montador Jon Philpot (Acampamento de Teatro).

Todos os direitos das imagens da premiação reservados para a Film Independent e de trechos dos filmes para as respectivas produtoras e distribuidoras.

Apresentação e roteiro: Matheus Pannebecker
Imagens: Guilherme Peracetta
Edição: Acauã Brondani

Independent Spirit Awards 2024: os meus votos nas categorias de cinema

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Ainda que critérios como criatividade e representatividade sejam colocados pela Film Independent como norte para a votação dos Spirit Awards, nunca é fácil a missão de enfim sacramentar escolhas. Devemos votar simplesmente comomanda o coração? Ou é justo abrir mão de certas preferências para equilibrar uma composição mais representativa de filmes?

Enfim, qual o sentido que buscamos quando tomamos perspectiva e vemos a lista de escolhas que serão submetidas. Tarefa complicada. Entretanto, fiquei para lá de satisfeito com os meus votos para os Spirit Awards de 2024 porque consegui reunir muito do que eu queria dizer com eles. Abaixo, compartilho com vocês as minhas escolhas nas categorias de cinema.

MELHOR FILME
Venceu: Vidas Passadas
Votei: Todos Nós Desconhecidos. A seleção era tão boa que aqui não passava de uma questão identificação. Vidas Passadas é, sem dúvida, um belo vencedor, mas Todos Nós Desconhecido conversa de forma mais íntima comigo.

MELHOR DIREÇÃO
Venceu: Celine Song (Vidas Passadas)
Votei: Andrew Haigh (Todos Nós Desconhecidos), que já vinha trilhando uma bela carreira com filmes como Weekend e 45 Anos. Em Todos Nós Desconhecidos, ele não só mantem o alto nível como se esmera ainda mais no sensorial e na estética.

MELHOR PERFORMANCE PROTAGONISTA
Venceu: Jeffrey Wright (Ficção Americana)
Votei: Trace Lysette (Monica). Fiquei com o coração partido por não votar em Andrew Scott (Todos Nós Desconhecidos), mas Trace Lysette dá show em Monica, um filme denso e que escapa dos caminhos óbvios de filmes sobre redenção. Ela é forte e multifacetada ao navegar nas várias facetas da protagonista-título.

MELHOR PERFORMANCE COADJUVANTE
Venceu: Da’Vine Joy Randolph (Os Rejeitados)
Votei: Ben Whishaw (Passagens), que tem o complicado trabalho de trazer à tona os afetos e as contradições de um personagem preso em um relacionamento tóxico e que, por diversas vezes, atormenta sua vida e suas escolhas aparentemente tão seguras.

MELHOR PRIMEIRO FILME
Venceu: A Thousand and One
Votei: A Thousand and One, em que a diretora A.V. Rockwell dá conta do furacão que é a protagonista e faz excelente parceria com a cantora Teyana Taylor (em seu primeiro papel protagonista no cinema). Um filme simples e cotidiano, mas que traz um diretora com plena propriedade de seus temas e personagens.

MELHOR FILME INTERNACIONAL
Venceu: Anatomia de Uma Queda
Votei: Zona de Interesse, que me assombra mesmo semanas após a sessão, mas fico igualmente feliz pelo vencedor, outro trabalho que considero excepcional.

MELHOR PERFORMANCE REVELAÇÃO
Venceu: Dominic Sessa (Os Rejeitados)
Votei: Dominic Sessa (Os Rejeitados), uma barbada na categoria. Sessa não se apequena ao lado do sempre ótimo Paul Giamatti e tanto conquista terreno próprio no filme de Alexander Payne como estabelece uma excelente sintonia com o seu parceiro de cena.

MELHOR ROTEIRO
Venceu: Cord Jefferson (Ficção Americana)
Votei: Celine Song (Vidas Passadas), que conjugou sobriedade e emoção com imensa delicadeza, fazendo um retrato muito verdadeiro sobre as escolhas que (não) fazemos na vida.

MELHOR PRIMEIRO ROTEIRO
Venceu: Samy Burch (Segredos de Um Escândalo)
Votei: Samy Burch (Segredos de Um Escândalo), que parece ter a experiência de uma veterana com esse roteiro de temas difíceis e que se equilibra em muitas camadas tênues, além do tratamento tão sedutor quanto capcioso dado aos personagens.

MELHOR MONTAGEM
Venceu: Daniel Garber (How to Blow Up a Pipeline)
Votei: Jon Philpot (Acampamento de Teatro), que costuma uma série de histórias e personagens com timing e harmonia. Parte da graça de Acampamento de Teatro se deve ao momo como Philpot administra o estilo de mockumentary com grande êxito.

MELHOR FOTOGRAFIA
Venceu: Eigil Bryld (Os Rejeitados)
Votei: Pat Scola (We Grown Now), pelo contraste entre o lúdico e realista que remonta ao delicado coming of age de dois garotos negros nos Estados Unidos dos anos 1990.